Manuel Rui Azinhais Nabeiro (1931-2023)

Ontem, dia 19 de março, faleceu Manuel Rui Azinhais Nabeiro, um dos empresários de referência em Portugal, presidente e fundador do Grupo Nabeiro – Delta Cafés. Tinha 91 anos.

O espírito empreendedor e a sua ética de trabalho estiveram sempre presentes nos momentos decisivos da sua vida. Em 1961, criou a Delta Cafés, dando origem a um grupo empresarial que hoje lidera o mercado dos cafés em Portugal e está em forte expansão nos mercados internacionais.

Manuel Rui Azinhais Nabeiro estava internado no Hospital da Luz, em Lisboa, devido a problemas respiratórios.

As cerimónias fúnebres têm incío hoje, em Campo Maior, sendo o funeral amanhã, também na vila alentejana.

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Figura de capa da «human»

Manuel Rui Azinhais Nabeiro foi o protagonista da edição número 4 da revista «human», em abril de 2009, tendo sido entrevistado em Campo Maior para essa edição, de que foi figura de capa. No título da entrevista surgia uma frase sua, «As pessoas é que nos fazem ser líderes.», e logo depois um texto de entrada onde se referia: «Um caso de sucesso empresarial já com meio século de existência, e bem no interior do país. A Delta vista por Manuel Rui Azinhais Nabeiro, um homem que acredita que são as pessoas que fazem os líderes. Como ele próprio diz, ‘as pessoas que nos conhecem, que veem a nossa atitude no dia-a-dia’.»

Deixamos a seguir a entrevista, repita-se para um dos primeiros números da «human», ainda no primeiro semestre de 2009.

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Como é ser-se empresário longe do litoral, onde se concentra grande parte da atividade económica do nosso país?

Eu penso nas décadas de 1950 e 1960. Havia dificuldades, os meios não existiam, não havia transportes adequados, nem vias adequadas. Fiquei aqui por uma circunstância, o amor que se tem à nossa localidade, às suas gentes, e assim uma pessoa não se desloca para outro lado. Foi onde nasci, onde sempre tinha estado, onde tinha aprendido a viver. Era aqui que tinha de continuar.

E com o que conseguiu até hoje, o que é que sente?

Sinto-me muito feliz. Sou a pessoa que coordena, porque foi a que pensou, aquela a quem a providência deu condições para evoluir, para conseguir criar um manancial de ideias e juntar as pessoas. Ninguém faz nada sozinho, e eu também não fiz nada sozinho. Sou um entusiasta do trabalho, gosto de realizar coisas, tive sempre dedicação ao trabalho, à causa comum. E isso é que me deu sempre muita força. Porque eu iniciei a nossa atividade com três pessoas. Continuava a pensar que na outra empresa, a do meu tio, onde trabalhava, deveria ter o sustentáculo para a minha. Foi tudo com muita paixão, muito querer, e hoje, fazendo uma reflexão, não tenho dúvidas de que criei uma empresa boa, bem considerada no mercado, que sabe o que anda a fazer, o que pretende. Esta retrospetiva dá-me motivos de satisfação, de orgulho. Mas um orgulho seletivo, porque eu não sou pessoa de orgulhos. Valorizo a felicidade, a transparência entre as pessoas, a alegria, a forma como nos sentimos no dia-a-dia, a forma como as pessoas nos tratam, dentro e fora da empresa. Valeu a pena fazer isto, ter esta casa boa, e é um motivo de muita satisfação. Há o reconhecimento do trabalho para uma causa comum, e por isso valeu a pena.

E como é que perspetiva o futuro?

Uma pessoa que começou nos anos 60 do século passado com a empresa e fez um percurso de quase 50 anos… Cinco décadas é muito tempo. A minha perspetiva é simples… É continuar, continuar, continuar. E hoje é mais fácil do que era ontem. No passado foi muito difícil, e agora chegar ao fim de tantos anos e ter um saldo tão positivo… Não há dúvida nenhuma de que hoje encaro o futuro com uma perspetiva de otimismo. Mesmo vendo algumas reticências que muita gente coloca, eu continuo a pensar que é preciso trabalhar, lutar, conseguirmos dedicar-nos aos nossos colaboradores… E esses nossos colaboradores, estes da empresa, pensam que é com o meu trabalho e com o trabalho de todos em conjunto que conseguimos fazer alguma coisa.

O seu otimismo contrasta um bocadinho com o pessimismo que se abateu sobre a sociedade….

As pessoas que perdem o seu emprego têm de estar pessimistas. Na parte empresarial, alguns empresários, alguns colegas, passam por problemas. Têm um produto que normalmente vendiam para uma determinada área e agora não vendem absolutamente nada. Há que ver a situação de cada um para podermos avaliar. No meu caso, o que fazíamos em 2008 continuamos a fazer em 2009.

Nota-se uma certa intranquilidade na generalidade dos trabalhadores, e alguma desconfiança em relação aos empresários. Em relação a si a ideia que existe é uma ideia muito positiva do empresário. Como vê isto?

Aquilo que eu fiz até hoje em relação a toda a população trabalhadora que anda perto de nós foi sentir o problema de cada pessoa, e assegurar-me de que as pessoas receberam coisas muito reais. Nunca meti uma pessoa a trabalhar porque tivesse uma necessidade absoluta dessa pessoa. Houve foi a esperança que eu sempre dei às pessoas de criar um posto de trabalho, de dar-lhes condições, e as pessoas, sem quererem, foram passando essa mensagem umas às outras. E hoje eu tenho de agradecer toda essa confiança, a de toda uma população trabalhadora, e até porque não dizê-lo a quase toda a população deste país, que me reconhece como uma pessoa ao serviço da comunidade.

Consegue imaginar como seria se houvesse muitos exemplos como o da Delta um pouco por todo o interior do país?

É preciso que haja vontade da parte de todos. Há que fazer coisas, e se não fizermos hoje amanhã já será tarde. As empresas, aquelas que têm condições para o fazer, devem procurar trabalhar em comunidade com quem de facto lhes vende um produto que é o trabalho. Há que realçar essa situação, e também uma outra, a de que é preciso criar uma cultura de comprar o trabalho mas também é preciso que haja uma cultura de quem vende esse trabalho. Eu na minha casa quero ter bons parceiros, bons camaradas de trabalho, porque realmente ninguém abusa… Quando se fala de horários de trabalho, o meu pessoal nunca é obrigado a trabalhar, trabalha sinceramente.

Há já alguns anos que se fala muito de responsabilidade social no mundo das empresas. No caso da Delta parece ser uma prática de há muito mais tempo, e algo natural, que surgiu antes de se falar da expressão como um conceito da gestão…

Tem a ver com a sua primeira pergunta, o facto de a nossa empresa ter nascido aqui, no interior, e crescido. Eu sou filho e neto de pessoas do Alentejo, que sempre foram trabalhadores do campo, todas pessoas muito carentes. Os meus pais eram, por assim, dizer analfabetos; a minha mãe era cem por cento analfabeta, e da parte da minha mãe foram pessoas até de uma humildade grande, pessoas de trabalho, pessoas dignas. No nosso caso foram coisas muito naturais, ninguém é melhor ou pior, isto são coisas que não se compram no supermercado, nascem com as pessoas. Depois, conseguimos transportá-las para os outros… Todo o meu pessoal tenta imitar-me, não tenho ninguém em termos de empresa, quase ninguém, em qualquer área, que não seja eu sou mas ele também quer ser. Isto é tudo uma cultura própria.

O sucesso do seu grupo empresarial tem em grande parte a ver com a sua postura, não acha?

Eu não acho, tenho a certeza. E tenho a certeza porque as pessoas habituaram-se também a acarinhar-me. Vejo isso quando estou conversando numa sala com os meus vendedores, em reuniões, ou com os meus colaboradores diversos na fábrica. Há uma admiração, e eu tenho a certeza de que assim é, não há dúvida nenhuma disso, de que por eu pensar nos outros esses outros começaram a pensar em mim. Em geral é assim, a população respondeu dessa maneira, e isso tem a ver com a nossa atitude no dia-a-dia.

O seu projeto empresarial é muito grande. De qualquer forma continua a ser de base familiar. Como vê essa questão?

Há uns anos colocava-se muito a questão… O que é que vai acontecer à empresa quando morrer A ou B? Hoje já é um pouco diferente. Acontece sempre nas empresas. No meu caso, tenho o meu filho, tenho a minha filha, tenho três netos já a trabalhar comigo, e penso que a sucessão é normalíssima. O nosso entendimento é de que as coisas possam ser tranquilas.

Como é que nas várias gerações são incutidos os valores da Delta, os seus valores?

Para mim foi uma coisa natural. Já tenho na essência por que é que estou nos cafés. Os meus descendentes pensam da mesma forma, porque estão cá fixados. O meu filho veio para a empresa logo após ter estado na universidade, ficou a trabalhar primeiro em Lisboa e depois passou para Campo Maior. Leva muitos anos de empresa. Já tenho um neto que neste momento deve ter cinco anos de empresa, tenho mais uma netinha que tem dois anos e tal, e tenho mais um neto com cerca de um ano de empresa. Com tudo isto, a transmissão dos valores faz-se naturalmente.

Tem pessoas consigo dos primeiros tempos da empresa?

Tenho. Pessoas com 40 anos de empresa. E os que não estão é porque estão reformados, e outros porque infelizmente já não fazem parte dos vivos.

Num grande grupo, com duas mil e tal pessoas, conhece-as todas?

Conheço, e vivo-as, e sinto-as. Reunimo-nos… Aqui na fábrica entro todos os dias, venho de manhã, à tarde, conforme as necessidades. São horas e horas. Falo com toda a gente. Isso é o meu dia-a-dia. E na área das vendas reúno todos os meses com o meu pessoal, com os chefes, os adjuntos dos chefes. E fazemos sempre uma reunião nos diversos pontos do país. Pode calhar num momento não me lembrar do nome de uma pessoa, mas logo a seguir recordo-me. Tenho um poder visual e de fixação enorme.

Há empresas de sucesso como a Delta que vêm de há muitos anos e que têm marcas não muito usuais para estes tempos que vivemos, nomes difíceis de pronunciar e de fixar. Como descobriu a marca Delta?

Sempre fui conservador. Nós trabalhamos com uma empresa de marcas e patentes, a J. E. Dias Costa, também uma empresa familiar, com várias gerações. Pedi para escolherem uma marca. Indicaram-me mais do que uma hipótese, o nome e o grafismo, e ficou Delta. Não foi a primeira hipótese, foi a segunda. É uma coisa corrente e prática, que se usa, uma coisa comercial. Foram três nomes os apresentados, no início da empresa. Não tenho ideia do primeiro nome. A leitura que fiz foi acústica, e percebi que é algo que existe no mundo todo.

Acha que essa escolha o ajudou a alcançar o sucesso?

É uma marca engraçada, uma marca feliz, bonita, alegre, e tem tido também sempre um grafismo bonito. Hoje é uma marca nacional, conhecida no país e também em grande parte do mundo.

Por que é que foi para os cafés?

Eu estava no centro da Península Ibérica, com a Espanha aqui mesmo ao lado…

Nunca se sentiu, portanto, num extremo do país… Tinha uma visão mais abrangente…

Sim, sem dúvida, eu estava no centro, contando com Portugal e Espanha.    

Mas essa não era a visão dominante…

Bom, o meu pensamento, naquela altura, como o de qualquer cidadão português, estava limitado. Mas fizemos o melhor possível. A ideia era a de ir para Espanha, tínhamos a raia, os espanhóis vinham aqui buscar café que nós tínhamos, primeiro o café verde que transformavam lá, e nós criámos essa ligação porque começámos a levar café para Espanha. Depois do café verde o café transformado, e mais tarde eu trouxe uma pessoa para fazer a torrefação, com o seu talento e a sua imaginação, e que acabou por fazer o que temos de marca, criou uma marca. Foi estarmos em contacto com Espanha que nos deu esta ligação com o negócio do café.

Li que começou com uma pessoa da GNR…

Não foi uma, foram três. Quando iniciei o negócio foi sem ligação ao meu trabalho do dia-a-dia.

Que era…

Na fábrica do meu tio, de café. A certa altura criei a minha pequena indústria, com reformados da GNR, que precisavam de ganhar mais para viver, pessoas que tinham reformas baixas. Trabalhavam comigo, faziam o serviço enquanto eu estava na fábrica do meu tio.

Vendiam café?

Não, o mercado estava ocupado por muita gente e não era fácil. No início vendiam cevada, mistura, muitas coisas, um pouco de mercearias…

Quando aconteceu o grande salto?

Depois do 25 de Abril o país mudou. Os hábitos mudaram, toda a gente ia tomar café. Felizmente que ainda é assim.

Enquanto as pessoas forem tomando café, a Delta não está em perigo…

Acho que devemos pensar no que temos e no que podemos fazer. Temos o nosso mercado e devemos pensar no que podemos fazer com ele. E temos de ir para outros, que é a nossa preocupação atual, conseguir juntar o suficiente para isso.

De três pessoas a trabalharem consigo para mais de duas mil e quinhentas agora… Como é que isso aconteceu?

Foram 50 anos. Todos os anos crescemos gradualmente. Todos os anos achámos que devíamos meter gente. Ainda no ano passado criámos mais 200 postos de trabalho. E as pessoas estão todas cá, não é para saírem. Foi um crescimento gradual, as coisas foram acontecendo.

Como vê a postura de empresas que estão por cá com uma fábrica, depois vão para o norte de África, depois para a Índia, com apoios públicos, ao sabor das condições económicas dos países?

Nós não estamos especializados nisso. O nosso trabalho é muito humano. Somos uma empresa com carácter familiar. Temos um estatuto muito próprio, e nem a família está disposta a que cada um vá para seu lado. E as coisas têm-se desenvolvido assim. Nunca tive essa atitude, porque achei que o meu caminho era este. Não faltaria capacidade para fazer como os senhores dessas empresas, não faltariam meios económicos… Eu creio que a razão para tais mudanças está nas circunstâncias dos sistemas existentes, e todo o ser humano é vítima delas, de determinadas formas. Eu também poderia ter sido vítima, mas felizmente não fui. A nossa empresa é familiar, com um rosto humano muito acentuado. Mas nós estamos em África, estamos em Espanha, há dois meses inaugurámos a nossa presença em França…

Estão noutros países pelo mercado, não pela mão-de-obra barata…

A mão-de-obra barata não tem futuro.

Há muita gente de outras empresas não pensa assim…

Mas eu não acredito muito nisso.

Com o seu percurso ligado ao mundo das empresas, como vê o mundo da política, onde agora só se fala de economia?

É uma pergunta um pouco difícil para uma pessoa que não está na política. Mas todo o ser humano é político, e eu até já fui autarca durante muitos anos, e habituei-me a ser político. Fui autarca antes da democracia, no tempo da outra senhora, e fui depois… Fui nomeado, fiz parte da comissão administrativa do meu concelho depois do 25 de Abril. Creio que toda a gente pensa em como se pode dar uma melhor forma de vida às pessoas de um país. Como suprir as carências das pessoas… Possivelmente a maioria dos políticos tem essa atitude, mas no modelo de vida em que estamos inseridos é natural que seja o factor económico o mais considerado.

Agora diz-se que as coisas não vão ser mais como eram…

O tempo o dirá. Penso que as coisas estão a mudar. Conheço a política por dentro e por fora. Nasci na carência e isso obrigou-me a pensar. Não sou capaz de fazer liderança na política, porque para se fazer liderança aí tem de se fazer como profissional.

E a liderança nas empresas?

A liderança é o trabalho, a filosofia de como encaramos o trabalho, como encaramos as pessoas envolventes. As pessoas é que nos fazem ser líderes, as pessoas que convivem connosco. Ser rigoroso, mas também objectivo, e ter um ponto de vista de que nunca deve ficar para amanhã o que se tem de fazer hoje. É aquilo em que acredito. A liderança é sempre dada pelas pessoas que nos conhecem, que veem a nossa atitude no dia-a-dia.

Quais são os valores da Delta?

A imagem está à vista de toda a gente, é uma empresa humana, social, virada para o futuro, desde sempre. São valores que se tornam ainda mais acentuados numa empresa de rosto humano… Não somos uma empresa que manda, somos uma empresa que vai, e em que o cliente está primeiro mas o amigo também está primeiro. Tudo isto faz com que tenhamos uma leitura geral forte, de que as pessoas gostam. Também poderá aparecer quem não goste, mas mesmo não gostando creio que sabe reconhecer que vivemos para nós mas que também pensamos nos outros.

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Nota: entrevista feita em Campo Maior, em março de 2009, por António Manuel Venda, acompanhado pelo fotógrafo Tiago Fróis.