Maria do Rosário Pedreira: «… alguém que veio de outro tempo.»

A figura mais conceituada da edição no nosso país, Maria do Rosário Pedreira, começou em 1987 como assistente editorial, na Gradiva, tendo desempenhado essa função durante nove anos. Depois de um interregno de dois anos, voltou à edição para lançar a Temas e Debates, no Grupo Bertelsmann, já na qualidade de editora. Desde 2010 no Grupo LeYa, acha que teve sorte na carreira, porque os talentos que descobriu ganharam prémios importantes, ajudando a que se construísse uma reputação.

Por Francisca Rodrigues

 

Como começou o seu interesse pela literatura?

Tive o privilégio de nascer numa casa de leitores – avó, pais, irmãos (sou a mais nova) –, havia muitos exemplos para eu seguir. E andei numa escola primária – o Lar Educativo João de Deus – em que a literatura (em particular, a poesia) era muito valorizada.

Lembra-se do primeiro livro que realmente a marcou?

Talvez «Platero e Eu», de Juan Ramón Jiménez. E mais tarde acho que foi «O Amante», de Marguerite Duras, que me fez perceber que a literatura podia ser um milhar de coisas diferentes.

Guarda os seus primeiros poemas?

A minha mãe ainda guarda quadras que eu fiz quando era pequena, daquelas em que rimava «coração» com «limão». Já eu sou pouco apegada a papéis, deito muita coisa fora e raramente volto a olhar para poemas que não meto dentro dos livros que publico. Se ainda tiver alguns, não sei onde andam.

Por que é que escreveu apenas um romance?

Foi uma espécie de terapia, uma forma de tentar aceitar a morte de uma pessoa querida, a minha avó. Para reincidir, precisaria de tempo e disciplina. Prefiro ler.

Quando surgiu a oportunidade de escrever para os mais jovens, e como foi desenvolvendo essa atividade?

Tratou-se de mero acaso. Uma amiga, que tinha vontade de escrever para jovens, viu um anúncio no «JL» [«Jornal de Letras Artes e Ideias»] de um prémio juvenil e pediu-me que a ajudasse, pois sozinha não conseguiria escrever um livro em dois meses. Acabámos por ganhar o prémio e a editora encomendou-nos uma coleção. Nos primeiros tempos, dois livros por ano, depois só um. Ao fim de 21 volumes, separámo-nos e cada uma fez as suas próprias coleções. Foram mais de 10 anos a escrever livros de aventuras, mas depois das adaptações televisivas cansei-me e deixei de escrever para essas idades.

E a poesia, pode-se falar de uma altura da sua vida em que a tenha vindo a encarar mais a sério?

Escrevia textos de recorte poético desde criança, e talvez por isso não conseguia ter distanciamento para perceber se eram publicáveis. Tive de ser convencida por outros: o então presidente do Instituto do Livro, José Afonso Furtado, e o poeta António Osório, que me incentivaram. Quando publiquei o meu primeiro livro de poesia já tinha 36 anos. Mas acho que nunca me levei muito a sério: nestes mais de 20 anos ainda só publiquei quatro livros pequenos – e nem sei se voltarei a publicar.

De onde vem a sua ligação ao fado?

Desde pequena que ouço fado. O meu pai era amigo da fadista Lucília do Carmo e padrinho de casamento do seu filho, Carlos do Carmo. Íamos muitas vezes jantar ao Faia, casa de fados onde ambos cantavam. Depois, na adolescência, substituí o fado por outras músicas, claro, mas a semente ficou. Quando se proporcionou começar a escrever para fadistas, foi como se nunca tivesse deixado de o ouvir.

Para que intérpretes já escreveu?

Carlos do Carmo, Aldina Duarte, António Zambujo, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, Carminho, Mísia, Cristina Branco…

Sabe quantas letras de canções escreveu? E quantos poemas seus foram musicados?

Já escrevi cerca de 40 letras. Em grande parte, foram cantadas em melodias do fado tradicional, já anteriormente gravadas com ouras letras por vários fadistas ao longo do tempo. Mas as que fiz para o António Zambujo foram musicadas por ele ou pelo Ricardo Cruz, têm composições originais feitas sobre as minhas palavras – devem ser uma meia-dúzia.

Qual foi a canção com letra sua que mais a surpreendeu?

Creio que «Flagrante», de António Zambujo. Porque com o fado já sabemos mais ou menos como vai ser, mesmo sem conhecer a melodia escolhida. Assim que ouvi o «Flagrante» – e ainda nem era a versão com arranjos – percebi que iria ser um êxito. Eu andava o dia todo com a música na cabeça.

Presumo que foi também a que mais a divertiu…

Sim.

Como olha para o seu percurso como editora?

Como o de alguém que veio de outro tempo – de um tempo em que os autores é que contavam – e teve de se adaptar ao novo tempo – em que os leitores-clientes é que contam. Mas alguém que procura não abdicar dos seus princípios, lutando pela literatura de qualidade e continuando a fazer autores e livros em vez de produtos.

Quando começou esse percurso?

Em 1987 entrei na edição e fui assistente editorial durante nove anos. Depois de um interregno de dois anos – em que trabalhei num escritório que organizou a presença de Portugal como país convidado da «Feira de Frankfurt» –, voltei à edição para fazer nascer a Temas e Debates, no Grupo Bertelsmann. Já o fiz como editora – definia o programa, as coleções, o número de títulos, o grafismo, etc). Foi nessa altura que me apaixonei pela tarefa de editar novos autores de língua portuguesa, algo que nunca mais abandonei.

Ganhou uma imagem de descobridora de talentos como editora. Tem consciência disso?

Tive sorte: os autores que lancei pela primeira vez (José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Ana Margarida de Carvalho) eram bons – são bons –, ganharam prémios importantes, ajudaram a que se construísse essa reputação. Mas também trabalhei muito; a maioria dos meus colegas não teria paciência para ler 100 originais à procura de um que valesse a pena… Em todo o caso, a situação também tem desvantagens: passo o tempo a receber mensagens de potenciais autores a pedir que os leia – e são muitos.

Por que é que começou a escrever num blogue?

Na altura em que comecei, os blogues estavam na moda. E de repente percebi que era uma forma excelente de chegar aos que gostam de ler, falando-lhes do que publico. O meu blogue é hoje uma espécie de sala-de-estar, onde muitos amigos se reúnem e conversam. Eu quase nunca respondo a comentários – não tenho tempo –, e os meus leitores ficam lá a conversar uns com os outros. É muito exigente escrever um post por dia, mas agora já há tantos habitués… Teria pena de os deixar.

De onde lhe surgiu o nome para o blogue e também a frase que o acompanha?

A ideia de «Horas Extraordinárias» (que alguém mais tarde me recordou ser o título de uma música do Sérgio Godinho, entre outras coisas)) veio de ser um blogue que falaria de livros lidos, por um lado, fora do trabalho (em horas extraordinárias, por assim dizer), e por outro lado de serem extraordinárias as horas em que podemos estar sossegados a ler por prazer. Já não tenho a certeza, mas creio que a frase que está no blogue foi inventada, entre aspas, pela pessoa do Sapo que cuidou do layout. E eu achei bem. De qualquer modo, o primeiro post do blogue tem essa explicação (é de maio de 2010).

Qual foi o ano mais importante da sua vida, ligado ao mundo da literatura?

Talvez 2001, quando um autor meu ganhou o «Prémio Literário José Saramago» e foi finalista do «Prémio APE» com o primeiro romance (José Luís Peixoto, com Nenhum Olhar») e eu publiquei o meu melhor livro de poesia – «O Canto do Vento nos Ciprestes». Uma boa conjunção.

Se pudesse indicar um autor ou uma autora do nosso país para o «Prémio Nobel da Literatura», quem escolheria?

Durante anos enviei ao PEN Clube (que o pede sempre aos membros) os nomes de Sophia de Mello Breyner, primeiro, e depois Herberto Helder como possíveis candidatos. Penso que agora não temos equivalente. Parece-me que António Lobo Antunes seria o nome mais evidente neste momento.

Gosta de citações? Existe alguma ligada à literatura que seja especial para si?

Não gosto. Tenho má memória para frases, boatos e coscuvilhices. Nunca sei quem disse o quê.

 

Maria do Rosário Pedreira (n. Lisboa, 1959), autora de poesia, literatura juvenil e romance, além de letras para canções (sobretudo fado), é editora no Grupo Leya. Tem sido responsável pelo lançamento da maior parte dos mais aclamados escritores portugueses das novas gerações. Mantém há alguns anos o blogue «Horas Extraordinárias», um espaço de culto para o público ligado aos livros.

NOTA: a foto da entrevistada é de Aurélio Vasques