O trabalho, a vida pessoal e o teletrabalho

Os trabalhadores em geral, principalmente as gerações mais jovens, têm vindo a reiterar a exigência de conciliarem a vida pessoal com a vida profissional, procurando um equilíbrio saudável entre duas realidades imprescindíveis na vida da maioria das pessoas.

Texto: Ana Cláudia Rangel

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Trata-se de um direito que durante décadas esteve envolto numa névoa mas que atualmente é reclamado pela sociedade e começa a ser reconhecido pelos tribunais.

Veja-se o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que fixou jurisprudência nesta matéria, com o potencial de gerar uma autêntica revolução nalgumas empresas, ao considerar que «o direito à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e com a maternidade e a paternidade não pode ser colocado em causa por deveres profissionais», obrigando a empresa em causa a conceder folga aos trabalhadores com filhos menores de 12 anos, sempre que estes o peçam.

Mesmo os empregadores começam finalmente a perceber que o estado de espírito dos trabalhadores não é indiferente no dia-a-dia de trabalho, e que trabalhadores felizes trabalham melhor e a produtividade tende a aumentar.

Contudo, embora o teletrabalho permita vantagens reais para todos, desde logo porque poderá permitir uma melhor conciliação da vida pessoal e com a vida profissional, poderá implicar também alguns riscos pelo que não deverá ser visto como uma solução milagrosa neste âmbito.

De facto, o teletrabalho foi a solução possível e mais vantajosa num período de pandemia que permitiu a muitas empresas a manutenção da atividade e para os trabalhadores a preservação do seu posto de trabalho. Mas estamos em crer que embora possa ser adotado com inegáveis virtudes em determinados casos não poderá facilmente ser generalizado como a única – ou sequer a melhor – forma de permitir a conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal. Embora este modelo possa ter alguns benefícios, como por exemplo uma diminuição de custos para ambas as partes, também tem inconvenientes que não deixarão de se sentir a curto/ médio prazo.

A fundamental conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional dos trabalhadores deve ser uma preocupação de todos, podendo o teletrabalho desempenhar um papel relevante no caminho que falta percorrer, mas não poderá ser visto como a única solução.

O ordenamento português compreende várias outras formas que facilitam a conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional, como a flexibilização de horários, que permite essa conciliação sem comprometer a ligação mais direta e fisicamente próxima entre a empresa e o trabalhador.

Note-se que a solução do teletrabalho pode até ter um efeito perverso nos trabalhadores que têm dificuldade em desconectar-se do trabalho quando têm o seu posto de trabalho sempre «à mão de semear», tal como promove o sedentarismo, dificulta as relações interpessoais e os debates salutares que poderiam permitir soluções inovadoras e até a aprendizagem mútua e permanente entre colegas.

Assim, e embora o teletrabalho possa ser visto como uma tentação para todos e um modelo do qual os trabalhadores já não querem abdicar, urge ponderar os seus efeitos, sobretudo a médio prazo, mesmo em funções que aparentemente se mostram compatíveis com o teletrabalho mas em que este dificulta às chefias o controlo efetivo, dificulta o desenvolvimento da cultura da empresa e impede mesmo um melhor desenvolvimento nas formas de trabalhar pela dificuldade em detetar eventuais aspetos a melhorar na realização do trabalho por parte de cada trabalhador.

Por outro lado, é irrefutável que existem diversas competências dos trabalhadores que serão mais difíceis de serem apercebidas e mensuradas pelo empregador em regime de teletrabalho e poderão inclusive travar uma natural progressão de carreira, o que seria indesejável para todos.

Em jeito de conclusão, podemos considerar que a fundamental conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional dos trabalhadores deve ser uma preocupação de todos, podendo o teletrabalho desempenhar um papel relevante no caminho que falta percorrer, mas não poderá ser visto como a única solução e, em muitos casos, sequer será a mais adequada e eficiente para trabalhadores e empresas.

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»»»» Ana Cláudia Rangel é managing associate da Raposo Bernardo & Associados – Sociedade de Advogados