«Hoje é Tudo Falso»
As crónicas admiráveis de António Souto

Chama-se «Hoje é Tudo Falso» o novo livro de António Souto, um conjunto de crónicas que terá apresentação em Lisboa a 14 de fevereiro, pelas 18H30, na Biblioteca da Escola Secundária de Camões (antigo Liceu Camões). O escritor Pedro Mexia fará a apresentação.

Texto: Redação Human

 

«Hoje é Tudo Falso» (ed. On y va) é o novo livro de António Souto, um conjunto de crónicas em que na abertura se cita um excerto de um texto de Eça de Queirós, publicado no primeiro número do jornal «Distrito de Évora», a seis de janeiro de 1867: «A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto de seus amigos, que entram com um cheiro de primavera, alegres, folgazões, dançando, que nos abraçam, que nos empurram, que nos falam de tudo, que se apropriam do nosso papel, do nosso colarinho, da nossa navalha de barba, que nos maçam, que nos fatigam mesmo e, quando se vão embora, nos deixam cheios de saudade.»

A capa do livro reproduz uma fotografia de Rui Fiolhais, de um mural pintado na via pública em Queens, Nova Iorque. A fotografia foi captada em dezembro de 2016, numa manhã soalheira, quando o seu autor estava quase a completar uma expedição aos famosos murais de Wellington Court, em Astoria, Queens.

António Souto escreve crónicas há muitos anos. Décadas. É uma forma de se obrigar a pensar e a escrever, ou, como assinala, «uma forma boa de me disciplinar no rigor de uma escrita que, sendo breve, me permite explorar as virtualidades da palavra e do discurso, de ao mesmo tempo me dizer e interpelar, provocando, com a graça possível, aqueles que me possam vir a ler».

Neste registo, onde é um dos mais admiráveis escritores portugueses, procura fixar e partilhar memórias e reflexões ocasionais. Estas últimas resultando sempre de um olhar atento sobre realidades que não consegue evitar – questões que boa parte das vezes se articulam com o seu ofício de professor, mas também outras que o inquietam, de tão inusitadas ou socialmente injustas.

Regressa frequentemente à infância, e sobre isso partilha: «Com o avançar da idade, vai-se-me atravessando cada vez mais na escrita (nas crónicas como na poesia). Não busco nem tento presentificar nostalgicamente um tempo que foi, o que acontece é que a infância que tive e soube, embora dura, me serve de contraponto e conforto para este presente acrítico de facilitismos, vacuidades, insolências e hipocrisias.»

 

O autor

Natural de Angeja, Albergaria-a-Velha (Aveiro), onde nasceu em 1961, António Souto é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa e pós-graduado em Teoria e Criação Literária pela Universidade Autónoma de Lisboa. Tem uma relevante carreira como professor, em Portugal e em França – desenvolve a sua atividade em Lisboa, sendo que lecionou igualmente em Estrasburgo, na Universidade de Ciências Humanas, atual Universidade de Estrasburgo, no Instituto de Tradutores, Intérpretes e Relações Internacionais e na Universidade Popular Europeia.

Exerceu, no XIV Governo Constitucional, as funções de assessor e de chefe de gabinete no Ministério do Trabalho e da Solidariedade.

É autor, entre outros trabalhos, dos livros de poesia Arcanas Carícias, Na Lavra do Dizer, Caprichos (com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues), O Tempo das Palavras (com prefácio de João de Melo), em parceria com Armindo S., Sonhos Sobrantes (com prefácio de Luiz Fagundes Duarte) e Palavras (In)adiáveis, bem como dos livros de crónicas Ex Abrupto – crónicas de tempos vagos e Dupla Expressão. Tem colaboração dispersa em várias publicações e antologias.

 

Um excerto

No dia seguinte, pela hora tardia de almoço, numa pequena pastelaria do cimo de Beja, acerca-se de nós uma catraia, de uns cinco anitos, e fita-nos. Como é que te chamas? Diana. Ah, és muito linda, toda morenaça. E tens um nome muito giro, sabias, um nome de deusa. Nada. Silêncio. De supetão, alheia a divindades e floreios, O meu pai chega daqui a dois dias. Ai é, e vem de onde, da França, da Suíça… Não, o meu pai está preso. E aos saltitos, tão insondável como viera, afastou-se rua fora e deixou-nos sumidos num afogamento enorme. A senhora por detrás do balcão encolheu um sorriso, que era normal, o pai da menina até já vinha passar os fins-de-semana a casa, que ela andava muito contente por o pai vir agora de vez, isto se não voltar a meter-se de novo em sarilhos, coisa de drogas, e que a menina contava a toda a gente, não fizesse caso. Mas fizemos. Fizemos porque há perguntas que se não devem fazer quando se não podem adivinhar respostas, quando se não pode decifrar a inocência que brota do fundo dos olhos de uma criança. Fizemos caso, também, porque a alegria que juncou o ar naquele instante contrastou com a dolência da véspera, mas isso foi o menos importante. O que valeu mesmo a pena foi termos trazido connosco, no regresso a casa, a candura confiante de uma deidade.