Miguel Seabra: «A minha natureza não se dá bem com conformismos e com o politicamente correto.»

O Teatro Meridional, em Lisboa, tem vindo a assinalar 25 anos de atividade com a reposição de alguns dos seus mais recentes sucessos. Depois de «Al Pantalone», original de Mário Botequilha, «A Lição», de Eugène Ionescu, e «António e Maria», a partir da obra de António Lobo Antunes, é agora a vez de «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão», de Eric-Emmanuel Schmitt. Oportunidade para uma conversa com Miguel Seabra, que a meias com Natália Luiza dirige o projeto.

Por Francisca Rodrigues

 

Como começou a sua ligação ao teatro?

Começou verdadeiramente em 1988, aos 23 anos, quando entrei para o «Curso de Formação de Atores» da Escola Superior de Teatro e Cinema.

Lembra-se da primeira peça que realmente o marcou?

Muito provavelmente «Café Muller», de Pina Baush, e todo o ciclo de espetáculos que ela apresentou quando Lisboa foi «Capital Europeia da Cultura», em 1994.

Qual foi o seu primeiro papel?

Fora da Escola Superior de Teatro e Cinema o meu primeiro trabalho como ator foi no Teatro da Garagem, e o meu primeiro papel foi o de um enigmático funcionário público no espetáculo «O Dia do Quarteto», com texto e encenação de Carlos J. Pessoa. Estávamos em 1991, eu tinha então 26 anos.

E a primeira encenação?

Coincide com o primeiro espetáculo do Teatro Meridional «Ki Fatxiamu Noi Kui», em 1992. Os primeiros espetáculos do Teatro Meridional tiveram sempre encenação coletiva, e eu sempre participei ativamente.

Consegue destacar um autor?

Samuel Beckett.

Por quê?

Porque o seu universo está sempre próximo das extremidades, do tudo e do nada, da tragédia e da comédia e isso é muito estimulante, criativamente falando.

E uma personagem?

O senhor Ibrahim, da peça «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão», de Eric-Emmanuell Schmitt.

Precisamente a peça que estão agora a repor, consigo em palco…

Sim.

Por que é que destaca o senhor Ibrahim?

Porque tenho sempre a sabedoria a fugir-me das mãos, como a areia de um deserto emocional, e como tal representa na perfeição a efemeridade do próprio ato teatral.

Na faculdade, começou por estudar gestão no ISCTE? Por que é que mudou?

Porque a minha natureza não se dá bem com conformismos e com o politicamente correto, e por isso continuei à procura de um lugar onde a minha identidade se pudesse expressar de forma livre e inteira. Quando saí do ISCTE, no fim do primeiro ano, fiz umas cadeiras para entrar em «Arquitetura», mas também não fiquei convencido. E estudei música durante dois anos, antes de entrar para a Escola Superior de Teatro e Cinema, com 23 anos.

Como olha para a sua carreira no teatro?

A minha carreira no teatro é indissociável do percurso do Teatro Meridional. Diria que tem duas fases muito concretas: antes e depois do AVC. A partir de 1995, e perante a realidade das minhas limitações físicas, coloquei mais ênfase na minha carreira de encenador, de desenhador de luz e de professor do que propriamente na de ator. Profissionalmente apenas fiz oito espetáculos como ator, não obstante ser essa a minha principal vocação.

E o projeto do Teatro Meridional, que palavras lhe sugere?

Olho para o projeto com entusiasmo e tranquilidade, com respeito e adrenalina. O Teatro Meridional é um projeto que assenta a sua riqueza na componente humana das pessoas que trabalham na companhia, na diversidade de apostas artísticas que apresenta e na resiliência face às situações mais complexas que tem enfrentado nestes 25 anos de percurso.

Já são 25 anos de caminhos, mas temos – a Natália Luiza e eu, como diretores artísticos – muita motivação para continuar a viajar e a descobrir novas formas e fórmulas de comunicar e de inquietar.

Tendo em conta o contexto do nosso país, acha que se pode considerar o projeto uma grande aventura?

Ao longo destes 25 anos, o Teatro Meridional produziu 54 espetáculos e já representou em 20 países dos cinco continentes, além de percorrer anualmente Portugal continental e ilhas por mais de 50 localidades. Neste percurso, recebeu mais de três dezenas de distinções nacionais e internacionais. Internamente, destaco as três vezes em que recebemos o «Prémio Nacional da Crítica», da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, em 1994, 2004 e 2014). Já em termos internacionais, houve o «Prémio Europa – Novas Realidades Teatrais 2010», o de maior prestígio em termos do teatro europeu. Também contamos com o reconhecimento dos pares e sobretudo do público. De facto, este projeto foi, é e continuará a ser uma grande aventura.

O que têm previsto para este ano, com a comemoração de um quarto de século de atividade?

Estamos a fazer a revisitação de seis espetáculos do nosso repertório: «Al Pantalone» (espetáculo estreado em 2014), «A Lição» (2016), «António e Maria» (2015), «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão» (2012), «Contos em Viagem – Cabo Verde» (2007) e «As Centenárias» (2013). Outras iniciativas que promovemos desde janeiro e esperamos continuar a promover até ao fim do ano são as seguintes: acolhimento de alguns espetáculos; ação de formação sobre a palavra dita, com Natália Luiza; workshop de cenografia e figurinos, com Marta Carreira, e um outro de interpretação, comigo; a continuação do «Laboratório de Dramaturgia», atividade com excelentes resultados no que se refere à criação de textos inéditos para a dramaturgia portuguesa; lançamento de um livro comemorativo dos 25 anos do Teatro Meridional; e a estreia de uma criação original, em novembro.

Consegue destacar um ano na sua carreira?

Muito possivelmente o ano de 1998.

Por quê?

Foi o ano em que voltei a subir a um palco, depois de ter sofrido um AVC em 1995. Foi no «Festival dos 100 Dias», integrado na «Expo’98», com o espetáculo «Ñaque ou Sobre Piolhos e Atores», apresentado no CCB [Centro cultural de Belém], em Lisboa.

Nasceu em Lisboa…

Sim, em janeiro de 1965.

Como recorda a sua infância e a sua adolescência?

Sou lisboeta de gema, alma e coração. Para mim, Lisboa é uma cidade completamente única no mundo. Passei a infância e a adolescência nesta cidade, mas brinquei muito na rua – a jogar futebol, a correr, a saltar muros e a andar de bicicleta. Recordo tudo com muita alegria. Também passava muito tempo em Albufeira durante as férias de verão, e na Beira Alta, em Santa Eulália, a aldeia da minha avó materna.

O que pensa de Lisboa?

Lisboa é uma cidade incrível, com a qual tenho uma empatia particular. Gosto muito da proximidade com o Rio Tejo, da luz inerente que o próprio rio reflete, das características geográficas da cidade, da multiculturalidade que acolhe e de ser uma cidade que abraça a lata transversalidade de raças que a povoam.

Para aonde caminha o teatro português? E a cultura em geral?

O teatro é feito de ciclos, tal como a vida. O teatro português é claramente um espaço cheio de futuro, porque temos muitos e bons artistas em todas as áreas – atores, encenadores, cenógrafos, figurinistas, desenhadores de luz, videastas, técnicos, produtores, etc. Claro que a influência dos audiovisuais, dos meios digitais e da velocidade consequente a que o mundo gira hoje em dia é determinante para este olhar reciclado. Eu prezo muito o conceito budista de impermanência, e com isto quero dizer que o teatro português e a cultura em geral têm muito espaço qualitativo de existência, porque a matéria criativa que subjaz aos processos qualitativos está impregnada no nosso ADN de povo aventureiro e afetivo.

Fez cinema e televisão…

Sim já participei em algumas séries de televisão – «Pedro e Inês» (2005) e «Equador» (2008), por exemplo –, e no cinema tive participações secundárias em alguns filmes: «Singularidades de uma Rapariga Loura» (de Manoel de Oliveira, 2009), «Tejo» (de Henrique Pina, 2011), «Colo» (de Teresa Villaverde, 2015) e «Al Berto» (de Vicente Alves do Ó, 2016). Protagonizei ainda o documentário «Logo Existo» (de Graça Castanheira, 2006), sobre a temática dos AVC.

Como olha para os próximos 25 anos do Teatro Meridional?

Com curiosidade e entusiasmo artístico, mas também com humana preocupação com o que se passa atualmente no mundo, devido a todas estas alterações no xadrez político da Europa e dos Estados Unidos, com o mundo a virar todo para um lado que me parece muito sombrio e temeroso.

Qual é a sua relação com o público?

O público e o ator são os únicos elementos indispensáveis do acontecimento teatral, logo tenho um enorme respeito pelas pessoas que se deslocam de suas casas para verem um espetáculo de teatro. Como artista, procuro estar muito atento ao mundo para entender o pulsar da humanidade. Como criador e numa primeira fase dos ensaios, o público é uma entidade ausente e inexistente. Mais tarde, quando começamos a fechar os espetáculos, então aí sim, preocupo-me empenhadamente com o que a plateia vai conseguir ver, sentir e entender, tendo sempre em conta que os espetáculos só fazem sentido se conseguirmos estabelecer um grau de comunicação qualitativo inquestionável.

Consegue definir um verdadeiro ator?

Antes de mais, um ator é uma pessoa. Depois, admiro mais as pessoas que trabalham conscientemente o seu corpo físico, emocional, mental e espiritual e que, através de uma prática constante, cuidam da evolução do seu olhar humanista, cultural, cívico e político para com o mundo.

 

Nota: na foto, Rui Rebelo e Miguel Seabra (em primeiro plano) na peça «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão» (foto de Nuno Figueira).

 

 

»»» Miguel Seabra lidera com Natália Luiza o projeto do Teatro Meridional, que está a comemorar 25 anos. Trata-se de uma companhia portuguesa vocacionada para a itinerância, que procura nas suas montagens um estilo marcado pelo protagonismo do trabalho de interpretação do ator, fazendo da construção de cada objeto cénico uma aposta de pesquisa e experimentação. As principais linhas de atuação artística do Teatro Meridional prendem-se com a encenação de textos originais (lançando o desafio a autores para arriscarem a escrita dramatúrgica), com a criação de novas dramaturgias baseadas em adaptações de textos não teatrais (com relevo para a ligação ao universo da lusofonia, procurando fazer da língua portuguesa um encontro com a sua própria história), com a encenação e a adaptação de textos maiores da dramaturgia mundial e com a criação de espetáculos onde a palavra não é a principal forma de comunicação cénica. A companhia foi fundada em 1992, realizou até à data 54 produções, tendo já apresentado os seus trabalhos em duas dezenas de países: Angola, Argentina, Bolívia, Brasil, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Jordânia, Marrocos, México, Paraguai, Roménia, Rússia, Timor e Uruguai. Isto para além de realizar uma itinerância anual por Portugal continental e ilhas. Os trabalhos do Teatro Meridional já foram distinguidos 33 vezes a nível nacional e nove a nível internacional, sendo de relevar o «Prémio Europa Novas Realidades Teatrais» em 2010.