Em algumas empresas digitais, a promessa de inovação e cuidado convive com a pressão intensa pelo acréscimo de desempenho. Termos como saúde mental e bem-estar tornaram-se slogans de marca das entidades empregadoras, mas muitas vezes não passam de ações simbólicas vazias de substância. Enquanto isso, o stress, os assédios, o burnout, a depressão e os afastamentos crescem em silêncio.
Texto: Isabel Mendes Imagem: Freepik/ creativeart
Com demasiada frequência, o sector de gestão de recursos humanos (RH), que deveria ser guardião do cuidado relativo aos trabalhadores, assume-se em muitas organizações como um braço operacional: executa metas, processos e indicadores (OKRs, KPIs), mas escuta com restrições. A saúde é tratada como um benefício extra, e não como parte da estratégia. Palestras, apps de meditação e eventos de bar aberto substituem ações estruturais – como as práticas de escuta ativa, análise e ajustamento das cargas de trabalho, gestão abrangente da comunicação interna e segurança física e psicológica.
Mais preocupantes são ainda algumas práticas do sector de gestão de RH quando tratam denúncias de assédio como «conflitos de trabalho». Não usando nem estratégias adequadas caso fossem conflitos, nem adequadas à eliminação do assédio. Em vez de proteger, promovem confrontos entre as partes, como se houvesse igualdade de posições e de forças. A vítima mais fragilizada – emocionalmente afetada e temerosa de represálias – acaba por ceder e dizer que «foi um mal-entendido». Com isso, o ciclo de violência e silenciamento é perpetuado.
Nesse cenário, o médico do trabalho – figura essencial para a prevenção – é frequentemente marginalizado. A sua atuação, reduzida aos exames de admissão e aos periódicos, não entra nas decisões de gestão. Quando propõe mudanças, é visto como obstáculo à produtividade. Ao calá-lo, silencia-se também a possibilidade de cuidar em profundidade.
Esse apagamento da dimensão humana é agravado quando as lideranças de gestão de RH têm origem fora das áreas que lhe estão próximas, casos da engenharia, do direito, das TI (tecnologias de informação) ou da gestão de produtos. Ainda que competentes nas suas áreas de formação, muitas vezes não possuem competências específicas ou sensibilidade para lidar com o sofrimento emocional ou relações interpessoais complexas. A gestão de RH passa a operar como um sistema de gestão de tarefas – rápido, pragmático, mas distante das pessoas.
Os custos dessa «não qualidade» na gestão de pessoas são altos: rotatividade, desmotivação, quebra de confiança, perda de talentos e de coesão das equipas. Em empresas que adotam a filosofia Agile, com todas as metodologias que a enquadram, isso torna-se ainda mais evidente. Fala-se em «colaboração» e «autonomia», mas na prática vemos cansaço crónico disfarçado de entusiasmo. A cultura da pressa gera entregas rápidas – mas não sustentáveis.
O cuidado não pode ser um adereço. É preciso reposicionar o gestor de RH como articulador do bem-estar. Isso implica:
– preparar líderes para reconhecer e acolher sinais de adoecimento psicossocial;
– integrar o médico do trabalho nas decisões estratégicas;
– rever metas que ignorem os limites humanos;
– dar preferência a formações em gestão de RH, psicologia, sociologia e saúde coletiva nas equipas de gestão de RH;
– Humanizar é mais do que um discurso bonito – é prática, estrutura e ética. Escutar o sofrimento é o primeiro passo para redesenhar ambientes saudáveis, produtivos e verdadeiramente ágeis.
«Silenciar o contributo do médico do trabalho é silenciar um contributo técnico e sensível sobre o que adoece as pessoas e as empresas.»

Isabel Mendes
Isabel Mendes é médica do trabalho e gestora de serviços de saúde.