Encontramo-nos em plena Quarta Revolução Industrial, aquela que é caracterizada pelo esbatimento das fronteiras entre humanos e máquinas.
Texto: Isabel Paredes/ Sofia Barros Cortez Imagem: Freepik
Embora, para grande parte das pessoas, as atuais consequências práticas para a nossa vida diária não sejam tão extremas ou espetaculares como as que vemos em muitos filmes de ficção científica, robôs otimizados pela inteligência artificial (IA) andam por aí e muitos de nós já interagimos com eles, seja na saúde (e.g., robôs cirúrgicos), na indústria (e.g., robôs colaborativos, que trabalham lado a lado com os humanos nas linhas de produção), no serviço a clientes (e.g., na hotelaria ou na banca) ou nos transportes (e.g., veículos autónomos).
Quanto à digitalização, ou seja, a passagem de dados físicos para formato digital, já convivemos com ela há várias décadas. Está na base da implementação da IA ao criar as enormes bases de dados que permitem à IA aprender, operar e produzir conteúdos, recomendações e decisões.
Estamos, então, na era dos Big Data. As nossas atividades geram yottabytes de dados que são armazenados, minerados e analisados por sistemas de inteligência artificial. Estes sistemas são utilizados por vários tipos de organizações, governamentais e privadas, para diversos propósitos, desde a gestão pública a fins comerciais.
A utilização massiva que fazemos de equipamentos digitais para aceder à Internet e às redes sociais, de cartões eletrónicos e de diversos tipos de sensores e identificadores deixa um enorme e completo rastro de dados que permite conhecer e reconstituir os nossos movimentos, preferências e escolhas. Ou seja, conhecer quase todos os passos da nossa vida.
Esta imensa capacidade de recolha e análise de dados proporcionada pela utilização da digitalização e da inteligência artificial coloca diversos problemas quanto à proteção da privacidade individual.
Algumas das questões levantadas pela digitalização e a utilização da IA são as seguintes:
– Até que ponto estamos dispostos a trocar a nossa privacidade pelo acesso a serviços mais rápidos e personalizados?
– Que impacto a digitalização da administração pública tem na privacidade dos cidadãos?
– Rastreamento da nossa presença on-line, nomeadamente através da utilização de cookies. Que dados são recolhidos? Quem lhes acede? Para que fins?
– Crescimento da utilização da biometria e recolha massiva dos nossos dados biométricos. Quem tem acesso? Onde ficam armazenados? Para que são usados?
A União Europeia tem-se preocupado em regulamentar estas questões da privacidade e direitos fundamentais, nomeadamente com a entrada em vigor em 2016 do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados e em 2024 do Regulamento da Inteligência Artificial (AI Act).
Sem dúvida, o AI Act constitui um marco fundamental na definição do futuro da IA, sendo a primeira iniciativa regulamentar abrangente neste domínio.
Já antes disso, o legislador laboral demonstrava preocupação com estas matérias, o que é evidenciado pelas referências normativas à utilização de algoritmos e sistemas de IA no Código do Trabalho, que prevê um conjunto de regras que devem ser respeitadas ao longo da relação laboral, passando pela contratação, a sua execução e a cessação.
Desde logo, o uso de algoritmos, IA e matérias conexas integra o elenco de normas legais que só podem ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que disponha em sentido mais favorável aos trabalhadores.
A tomada de decisões com base em algoritmos ou outros sistemas de IA deve ainda respeitar os princípios vertidos no Código do Trabalho relativos a igualdade no acesso ao emprego e no trabalho (incluindo em termos de formação, promoção ou carreira profissionais, retribuição e outras condições de trabalho, critérios para seleção de trabalhadores a despedir, etc).
Adicionalmente, os parâmetros, critérios, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de IA, que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional, são também: (i) objeto do dever de informação que recai sobre a entidade empregadora, o qual deve ser efetivado por escrito e dentro dos prazos legais prescritos; (ii) parte integrante do âmbito do direito à informação da comissão de trabalhadores e do direito à informação e consulta dos delegados sindicais.
Regressando ao AI Act, com relevância no plano laboral, importa referir que este Regulamento estabelece uma obrigação (já aplicável) para os empregadores, que implementam ou utilizam IA, de assegurar um nível suficiente de literacia nesta matéria aos seus trabalhadores, para que adquiram conhecimentos técnicos e jurídicos sobre estes sistemas e, acima de tudo, para que tomem consciência das oportunidades e dos riscos inerentes.
O Regulamento europeu impede também a utilização de sistemas de IA para inferir emoções dos trabalhadores no local de trabalho, proibição que já se encontra em aplicação e cuja violação acarreta coimas bastante elevadas.
Finalmente, de destacar ainda que o AI Act classifica como sendo de risco elevado os sistemas de IA utilizados nos domínios do emprego e da gestão de trabalhadores, nomeadamente para efeitos de recrutamento e seleção de pessoal (para colocar anúncios de emprego direcionados, analisar e filtrar candidaturas a ofertas de emprego e avaliar os candidatos), de tomada de decisões que afetem os termos da relação de trabalho, de promoção e cessação das relações contratuais de trabalho, de atribuição de tarefas com base em comportamentos individuais, traços ou características pessoais, e de controlo ou avaliação de pessoas no âmbito de relações laborais. Nestes casos, uma das obrigações mais relevantes no contexto laboral é o dever (que apenas será aplicável em 2026) de a entidade empregadora informar previamente os representantes dos trabalhadores e os trabalhadores afetados de que estarão sujeitos à utilização de sistemas de IA de risco elevado no local de trabalho.
Desta feita, a literacia em IA e o acompanhamento dos avanços legislativos nestas matérias assume um papel essencial, sendo inquestionável que a IA constitui um dos maiores desafios que o mercado de trabalho enfrenta atualmente.

Isabel Paredes, Partner & Chief Psychologist da SHL Portugal

Sofia Barros Cortez, Associate da Vieira de Almeida (VdA)
A SHL Portugal é uma empresa de consultoria estratégica e de tecnologia para a gestão do talento, representante das soluções do Grupo SHL, que tem uma posição de destaque mundial em assessment e talent analytics. Opera em cinco países de língua portuguesa e trabalha com centenas de organizações, dos sectores público e privado. Após celebrar 45 anos em 2024, continua a apostar na investigação e na inovação tecnológica aliada à inteligência artificial (IA).
A sociedade de advogados Vieira de Almeida (VdA) é uma organização vibrante e inquieta, inovadora, que se afirma nas aspirações de um coletivo que quer ser parte ativa da solução para os desafios sociais e ambientais que enfrentamos enquanto sociedade, mobilizando pelo exemplo de respeito, justiça e humanidade. Orgulhosa da sua história, a VdA constrói o futuro assente numa cultura que a distingue e que une em torno de um desígnio comum. Uma cultura fundada na consciência de que a cidadania é a âncora da sua prática e que faz dela uma organização aberta, inclusiva e solidária, focada nas pessoas e na justa oportunidade de realização de cada uma.