Maria Eugénia Saraiva/ Nuno Ferro

Sensibilizar para o VIH no mercado de trabalho

A presidente da Direção da Liga Portuguesa Contra a SIDA e o presidente da Assembleia Geral da instituição falam-nos o impacto que a desinformação relativa ao vírus do VIH tem no mercado de trabalho.

Texto: Redação «human» Fotos: DR

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De acordo com um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ainda persistem elevados níveis de estigma e discriminação relacionados com o VIH no mundo do trabalho. Quais as consequências desta discriminação para o doente?

[Nuno Ferro] As consequências são evidentes na maior dificuldade no acesso ao mundo do trabalho, seja através de rejeição de candidaturas a postos de trabalho, seja através de vias mais subtis de consideração, sem fundamento real, de outras candidaturas, em prejuízo do candidato que vive com VIH. Porém a situação pode também suscitar-se quando a pessoa já está inserida no meio laboral e, nessa situação, existem múltiplas vias para afastar o trabalhador: umas vezes sob a forma de exercício de um direito (não renovação de contrato) e outras vezes pela criação de condições objetivas de impossibilidade de trabalhar, levando à saída do trabalhador.

Quais são as principais queixas dos doentes?

[NF] Não estamos perante doentes. Estamos perante pessoas iguais em direitos e deveres como todas as outras que não vivem com o VIH. Na esmagadora maioria das situações, as pessoas que vivem com VIH (PVVIH) em nada se distinguem das restantes pessoas em matéria de execução de trabalho, mas, uma vez conhecido o seu estado de saúde, é muito frequente iniciar-se um processo de discriminação mais ou menos declarado, mas normalmente pautado por condutas dissimuladas.

De que forma se pode combater esta discriminação relativamente ao vírus do VIH no mundo do trabalho?

[NF] Existem os mecanismos legais para reprimir a discriminação, mas apenas atuam quando, muitas vezes, a discriminação já levou à rotura da relação laboral, pelo que a sua eficácia na prática é reduzida. A solução passa pela mudança de mentalidades e esta faz-se pela educação, seja através de campanhas de educação pública na via escolar, seja através de difusão de informação para a população em geral, algo em que o Estado não costuma apostar.

No questionário realizado, quatro em cada 10 pessoas afirmaram que os doentes que vivem com VIH não deveriam ser autorizados a trabalhar diretamente com pessoas que não são seropositivas.  Seis em cada 10 acreditam que seria favorável a despistagem obrigatória do VIH antes de as pessoas serem autorizadas a trabalhar. Se existissem campanhas de literacia sobre o vírus nas empresas, acha que a discriminação poderia diminuir?

[NF] Obviamente. Aliás, o resultado do relatório da OIT e do instituto de sondagens Gallup International  demonstra a persistência do estigma e da discriminação relacionados com o VIH no mundo do trabalho e revela bem a necessidade de mudança de mentalidades e de comportamentos, bem como a ausência de educação coletiva neste aspeto.

Qual é a importância da Medicina no Trabalho para conter esta forma de discriminação?

[NF]  Pouca ou nula. Desde logo porque a Medicina no Trabalho tem ainda um papel secundário e pouco relevante na organização empresarial, sendo considerado, ainda hoje, como algo que tem que existir porque a lei manda existir e nada mais. Por outro lado, a permeabilidade do sigilo médico na circulação da informação leva à difusão de dados relativos ao trabalhador sem que haja consequência positiva, mas antes negativa de tal facto, como por vezes acontece com utentes que procuram na Liga Portuguesa Contra a SIDA apoio para ultrapassar estas situações constrangedoras, para os mesmos. A realização de testes de rastreio deve ser verdadeiramente voluntária e isenta de qualquer coação, devendo os programas de rastreio respeitar as orientações (inter)nacionais sobre confidencialidade, aconselhamento e consentimento informado.

Que cuidados devem ser adotados por todas as partes no sentido de se ter um ambiente de trabalho saudável?

[Maria Eugénia Saraiva] De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a expressão «Ambiente Saudável» refere-se «onde os trabalhadores e seus superiores cooperam para implementar um processo de melhoria contínua para promover a saúde, segurança e bem-estar de todos os trabalhadores no local de trabalho». Segundo a OIT, este conceito traduz-se numa cultura em que o direito a trabalhar num ambiente seguro e saudável é respeitado a todos os níveis e em que governos, empregadores e trabalhadores colaboram ativamente para assegurá-lo, através da definição de um sistema de direitos, responsabilidades e deveres, assim como da atribuição da máxima importância ao princípio da prevenção. O VIH ligado ao meio laboral não deve ser tratado de forma diferente, mas sim ser abordado como todas as outras doenças e/ ou situações graves existentes. Tal é necessário não apenas porque a questão do VIH afeta todos os trabalhadores, em termos de saúde no seu todo (física, psicológica e emocional), mas igualmente porque o local de trabalho tem um papel importante na prevenção global. O que sabemos hoje, é que o estigma, a discriminação e a ameaça da perda de emprego sofridas pelas PVVIH constituem obstáculos a estas pessoas, aumentando assim a sua vulnerabilidade, afetando os seus direitos a benefícios sociais. É importante apostar na literacia em saúde, porque tal como noutras patologias, as PVVIH ou doenças associadas, devem poder continuar a trabalhar durante o tempo em que estejam clinicamente aptas para ocupar um emprego disponível e apropriado.

Como se transmite o VIH e quais os sintomas a estar atento?

[MES]  O VIH é transmitido através de três vias: sexual, sanguínea e de mãe para filho (transmissão vertical). Na via sexual, o vírus transmite-se quando há contacto das mucosas ou da pele com fluídos que contenham o vírus (sémen, sangue, fluídos vaginais e anais). É importante referir que a existência de feridas na pele aumenta o risco de transmissão do vírus (por exemplo, lesões de sífilis, herpes genital ou clamídia). Na transmissão sanguínea, a infeção poderá ser  transmitida através de utensílios que tenham estado em contacto com sangue que contenha o vírus. Esses utensílios podem ser objetos de uso pessoal, como a escova de dentes, objetos perfurantes ou cortantes. Pode ainda ser transmitido através da partilha de seringas ou através de instrumentos, que não tenham sido devidamente esterilizados como, por exemplo, os instrumentos utilizados para piercings e tatuagens. A transmissão de mãe para filho pode ocorrer durante a gravidez, o parto ou a amamentação, em casos de grávidas com infeção por VIH não controlada. Preferimos não falar sobre sintomas, porque além de serem pouco específicos, podem ser semelhantes a uma gripe (febre, dor de cabeça, dor de garganta ou dor nas articulações e músculos). Contudo, valorizamos só existir uma forma de saber se estamos infetados com o VIH, realizando o teste de rastreio, pelo menos uma vez por ano e aconselhamos todos que julgarem terem tido um comportamento de risco, a ligar para a Linha SOS SIDA (800 20 10 40) para aconselhamento, orientação ou referenciação.

Como se previne o VIH?

[MES] O VIH tem um forte impacto na sociedade e na economia e, por sua vez, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social e económica aumentam a dificuldade de acesso à prevenção, ao tratamento e aos cuidados, levando a um maior risco de transmissão. A falta de informação e de sensibilização também contribuem para isso. É por isso importante apostar na prevenção primária, nas escolas e nas universidades, ou seja, incluir a Literacia em Saúde nos currículos escolares, mas também no mundo organizacional e empresarial. Apostar em campanhas de prevenção que envolvam as PVVIH e que sejam difundidas em todos os canais públicos ou privados e em horários nobres, que todos possam ter acesso. Além do preservativo feminino e masculino (interno e externo), hoje, sabemos que o tratamento é também prevenção e que se a carga viral estiver indetetável o VIH é intransmissível (I=I). Existe também a toma da PrEP, a profilaxia pré-exposição, que é tomada antes da ocorrência de um comportamento de risco. Contudo é importante referir que a PrEP apenas protege as pessoas de contraírem a infeção por VIH e não confere proteção em relação a outras infeções de transmissão sexual, pelo que o uso consistente do preservativo interno e externo continua a ser uma medida robusta de prevenção.

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»»»» Maria Eugénia Saraiva, psicóloga clínica e da saúde, especialista em sexologia e intervenção comunitária, é presidente da Direção da Liga Portuguesa Contra a SIDA. Nuno Ferro, advogado, é cofundador e presidente da Assembleia Geral da instituição.

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