Rita Ferro
«Viena de Áustria, por exemplo, para mim é um bolo de noiva.»

Aos 10 anos, com um poema publicado no «Diário Popular», começou a caprichar nas redações da escola. E a receber encomendas de versos. Bem mais tarde, ao 35, trabalhando em publicidade, Rita Ferro deu a conhecer o seu primeiro romance. E leitores foi o que desde aí não lhe faltou.

Por Francisca Rodrigues

 

O que é que a levou à literatura?

Não sei dizer ao certo, mas provavelmente o facto de ver, desde criança, pais e avós a lerem. Eram muito criativos a cativarem-nos. Lembro-me do livro «Kô & Kô», ilustrado pela Vieira da Silva, contando uma aventura de esquimós. Além de que pai e avó tinham livros infantis que líamos e levávamos para o colégio, todos orgulhos. Um dos poemas da minha avó era prova escrita da admissão à quarta classe. E depois toda a mitologia em torno de escritores e artistas, visitas lá de casa.

E o que é que a levou à escrita?

Escrevi um poema aos 10 anos, e foi publicado no «Diário Popular». Fiquei vaidosa, e a partir daí comecei a caprichar nas redações da escola. E quando descobriram que eu tinha jeito para versejar encomendavam-me poemas para os anos de uma tia-avó ou de um primo. A importância de um incentivo nesta idade é fundamental. Curiosamente, nunca mais voltei às rimas, para além de letras para um ou outro fado.

Como olha para a sua carreira enquanto escritora?

Se quer saber, olho-a com alguma admiração. Escrever 31 livros em 31 anos, prova-me que consigo uma coisa que nunca consigo noutros planos: começar e acabar alguma coisa. Não acabo cursos, não me mantenho em grupos, não me aguento em casas, não mantenho uma atividade física, um plano, uma promessa. Só sei acabar livros e casamentos. [risos]

O que lhe parece o meio literário, em que está inserida?

Miserando, politicamente complexado e nada plural. Quer dizer: todos os colegas, individualmente, são encantadores. Em grupos, sabotam e boicotam pares, e olhe que nem estou a falar de mim. Tenho passado por entre os pingos da chuva e só me mantenho em prova porque sou forte e não é difícil derrubarem-me. E ganhei um PEN, o que foi uma imensa alegria. Sei rir-me de mim mesma e não me levo a sério, porque tudo isto é relativo. Mas há para aí pavões que sonham com um enterro no panteão…

Em que ano começou a escrever o primeiro livro?

Comecei tarde, com 35 anos. Antes prostituía a veia [risos] numa multinacional norte-americana. Era redatora de publicidade redigida.

Quando publicou esse livro?

Em 1990.

Consegue traçar um percurso através dos livros que escreveu?

Consigo. Na minha vida, tudo gira à volta do amor, o resto é para mim secundário. Uma vez, Vasco Graça Moura, cabeça que sempre admirei, numa entrevista que lhe fizeram, à pergunta «que leva daqui?», respondeu «as grandes obras universais». Eu levo quem amo e quem me amou, nem me ocorreria mais nada.

Como foi a sua obra marcada pela sua família?

Sempre tive medo deles, a par e passo com o respeito. Eram pesos pesados. Tive medo de me estrear por eles, não pelo público, menos ainda pela crítica. Tinha medo de os desapontar, sobretudo à minha avó Fernanda [a escritora Fernanda de Castro], que me desafiou a escrever. Depois, tive medo de os escandalizar. Já morreram todos e ainda me inspiram medo. Mais do que talento, cada um na sua área, eram pessoas de grande, enorme, carácter. É ainda por eles que me meço. Não no aspeto literário, mas no humano. Literariamente, nunca caí no ridículo de me comparar.

Como é escrever sobre um familiar?

Ui, foi um bico-de-obra. Estudei muito, pesquisei durante dois anos. Depois, tentei esquecer-me de tudo e seguir o meu instinto. Se se refere ao romance sobre o meu avô, saiu exatamente como queria. Mas primeiro que me libertasse da obediência ao facto, tive pesadelos. Não sou boa para historiar, a minha memória não é cronológica nem histórica. É pessoal e afectiva.

O facto de esse familiar ser uma figura importante na história do país acrescentou alguma particularidade à escrita?

Claro que sim. Medo, insegurança, dúvida, orgulho, amor, reserva.

Como se sente a escrever sobre si própria, ou tendo como inspiração a sua vida?

É o meu registo, o resto faço mal.

Como era a crítica literária quando começou a escrever?

Tenebrosa. Dir-se-ia que os críticos eram pagos para fazer sangue. Pouca gente sobrevivia àquele arraso. Depois, a coisa foi-se atenuando. Há mais humanidade. No tempo do meu pai, que também foi crítico literário, havia outra subtileza. Bom, não tenho a certeza do que estou a dizer, porque é uma sensação e não uma verdade científica. Era o que me parecia. Nos primeiros anos vivia apavorada de chegar a minha hora.

E agora?

Agora perdi o medo.

O que lhe sugere a expressão «escrita feminina»?

Irrita-me, pelo tanto que se fala disso. O tema já me enjoa. E sou absolutamente contra-corrente. Acho, sim, que há uma escrita objetivamente feminina e outra masculina. Que homem poderia ter escrito os poemas da Florbela? Que mulher poderia ter escrito os livros de John le Carré? Sim, claro, há homens femininos e mulheres masculinas. Mas, para mim, ainda há masculino e feminino. Essa coisa do «não há sexos, há pessoas» não me faz sentido algum. Sou feminista, mas não nisso. Há diferenças entre os sexos, e não estou interessada em vê-las esbatidas.

Há a ideia de que temos mais homens escritores e mais mulheres leitoras…

Não sei, talvez. Os artistas-homens começaram há mais séculos, é natural que ainda haja mais. Mas é uma questão de tempo. Mais uma ou duas gerações e a coisa equilibra-se. Quanto aos leitores, sabe-se que há mais mulheres leitoras de ficção e romance histórico, apenas. Não há sondagens noutras áreas da literatura, penso.

Consegue isolar dois ou três livros que a tenham marcado? E autores?

Consigo isolar muitos. Evito responder, porque sempre que me perguntam isso, sem querer, vou variando os nomes. Mas penso que a grande estalada foi o realismo mágico, aos 18 anos. Primeiro, com o Juan Rulfo e «Pedro Páramo», depois com o Gabriel García Márquez e «Cem Anos de Solidão». Já me tinham ensinado a fantasia, o maravilhoso e o fantástico, mas como eles, ninguém. Só a expressão «realismo mágico» é maravilhosa, pela verdade e pelo paradoxo.

Onde mais gostou de falar sobre os seus livros?

Não há assim tanta variedade. Ou é nas minhas apresentações, ou é nas câmaras e nas bibliotecas, ou é em clubes de leitura, convidada por particulares. Gosto mais de contar histórias e de fazer rir as pessoas do que falar sobre os meus livros. Sinto-me sempre pretensiosa. Posso parecer pateta, mas prefiro. Para mim, a importância a que certos autores se dão nega e desmente toda a sabedoria que possam ter.

Tem experiência na rádio e na televisão. Como seria o seu – feito por si – programa de televisão, digamos assim, ideal?

Talvez um concurso de personalidades. Não de personalidades da vida pública, nada disso. Da personalidade de cada um. Um formato qualquer em que as personalidades – e não os conhecimentos, que já enjoa – pudessem concorrer.

Consegue isolar uma personagem dos seus livros? Como é que lhe surgiu?

Nunca sei de onde chegam as minhas personagens, digo-lhe honestamente. A Pompeia, de «O Vento e a Lua», uma vagabunda romântica, é uma das minhas preferidas. Há outra, no «És Meu», que penso até que não tem nome, uma mulher que comete eutanásia ao marido por ciúme, com que o meu lado sombrio se identifica. Lembrei-me destas duas agora. Se me perguntar amanhã, lembro-me de outras.

Gosta de viajar? Tem algum lugar que verdadeiramente se destaque de todos os outros?

Gosto, e viajo bastante. Prefiro sempre o terceiro mundo. Viena de Áustria, por exemplo, para mim é um bolo de noiva. Senti-me bem no Ladakh, no Tibete indiano, no alto dos Himalaias – pensei que poderia viver ali para sempre. É um regresso ao tempo de Jesus… As casas de adobe, os burros, a ruralidade, tudo aquilo é bíblico. Também senti isso nas margens do Nilo, por exemplo.

Se for apenas relativo a viagens motivadas pelos seus livros, que lugar mais a marcou?

Não tenho romances associados a geografia, penso. Espere. Em «A Secretária de Sidónio Paes», tive que pesquisar sobre Berlim e aprendi a gostar da cidade. Tenho também um romance passado no Brasil. Mas a geografia e os cenários em geral não descrevem os meus livros. Assim como a idade ou as caras das pessoas.

Espera escrever até quando?

Espero não escrever para sempre. Estou saturada. Saberia viver sem escrever. O eremitério a que isto nos obriga, o próprio meio literário e as suas doenças de ego, não fazem bem a ninguém.

Consegue dizer o maior elogio, no sentido de o que mais lhe agradou, que já teve em relação aos livros?

Lembro-me de a Isabel da Nóbrega ter escrito uma vez, sobre um dos primeiros livros, que eu escrevo com uma «ternura firme». Não sei bem se entendi o significado, mas se é o que penso, gostei de ler. Um dos meus maiores pavores é perder a doçura. Que o cinismo vença! Como escreveu o Beckett, «estamos na Terra e não há cura para isto».

Como é o seu trabalho ligado à escrita, mas fora dos livros?

Crónicas, encomendas das mais variadas, rádio semanal, prefácios e apresentações, entrevistas… Não tenho oficinas de escrita. Ministro três cursos diferentes: «Primeiro Livro», «Começar a Escrever» e «Incentivo à Criação Literária».

Por que é que faz esses cursos em sua casa?

Por preguiça.

Como tem corrido a experiência?

Maravilhosamente. O último grupo tinha 16 pessoas e ficaram amigas até hoje. Criámos um grupo secreto no «Facebook», e fomos a Barcelona. Alugámos uma casa a 900 metros da Sagrada Família… Por vezes, vamos ao teatro juntos. Fomos em grupo ao Trindade ver a peça do Albee. São pessoas desde os 22 até aos 68 anos, mulheres e homens. Uma empatia fulminante e rara.

Como olha para os seus leitores?

Como o pão da boca e o cálice da salvação.

Deus me perdoe a metáfora!

Parece-lhe que se fala bem português em Portugal?

Sim. O português é difícil. É fácil falar bem inglês, para um inglês, e não é tão fácil falar português para nós. A nossa língua está eivada de exceções. Fala-se muito no mau português dos jovens… É mais elementar, mas é eficaz. Não sou tão negativa como a maioria. O novo acordo é um aleijão, nem quero falar disso.

Há alguma expressão, palavra, maneira de falar, etc que a irrite particularmente?

Sim. Os advérbios de modo repetidos, como o «extremamente». A palavra «afeto», que já vomito – sou do tempo dos sentimentos. Tratarem as mulheres por pá… Ver mulheres a tratarem os homens por pá, que está mais correcto – por ser abreviatura de rapaz –  mas que também acho medonho. Há mil coisas que me irritam…

Há algum aspeto que queria referir, mesmo sem pergunta?

Não. Isto já vai em uma hora. Tenha dó!…

 

 

»»» Rita Ferro, escritora, é filha do ensaísta António Quadros e neta da escritora Fernanda de Castro e de António Ferro, um dos editores da revista «Orpheu». Nascida em 1955, frequentou um colégio de freiras e fez um curso de design de interiores, no IADE, instituto de que o seu pai foi fundador. Aos 20 anos já era redatora de publicidade nas «Selecões do Readers Digest», tendo aí assinado textos sob pseudónimos. Passados 15 anos publicou o seu primeiro livro, tornando-se uma autora best-seller. Tem colaborado com revistas e jornais, assim como na televisão e na rádio.